O Contrato Invisível: Quando o Desuso Sustenta o Modelo de Negócio.
- Marcus Vinicius Reis
- 19 de abr.
- 4 min de leitura

📌 Por Marcus Vinicius de Menezes Reis - www,mvreis.com.br
Há negócios que prosperam pela excelência da entrega; outros, pela sutileza com que administram a frustração do cliente. No segundo grupo, despontam modelos surpreendentemente eficazes — como certas academias de baixo custo que florescem nos centros urbanos. Aparentemente democráticas, modernas e acessíveis, elas operam sob uma lógica distinta da que se espera de uma prestação de serviço contínua: seu maior trunfo está em atrair o cliente e, em seguida, não precisar dele presente. Nesse paradoxo entre acesso e ausência, constrói-se uma rentabilidade silenciosa, mas notavelmente eficiente.
A ambientação costuma impressionar. Aparelhos novos, design limpo, luzes indiretas, espelhos estrategicamente dispostos. Há algo de futurista na composição. Mas a estética, que à primeira vista atrai, logo se revela cansativa. A iluminação artificial, constante e fechada, torna o espaço estéril. A música — às vezes alta demais, outras vezes repetitiva — reforça o incômodo. A luz negra, símbolo de modernidade, passa a remeter a um ambiente sintético, quase fabricado. Com o tempo, o espaço mais afasta do que convida.
Essa percepção não é acidente de percurso — é engrenagem de modelo. A análise econômica do direito oferece lentes para decifrar esse arranjo: o serviço é desenhado para ser contratado, não necessariamente utilizado. O negócio se equilibra sobre dois pilares: alta taxa de adesão e baixa taxa de comparecimento. A equação só funciona porque o número de pessoas que efetivamente comparece é uma fração mínima da base total de pagantes.
O contrato, nesse contexto, ganha contornos simbólicos. Paga-se menos pela musculação e mais pela sensação de pertencimento a um projeto de saúde. A assinatura vale como promessa: um lembrete de que, em algum momento, se voltará a cuidar do corpo. O preço acessível faz o restante — não dói o suficiente para justificar o cancelamento. E o mês seguinte sempre parece ser o mês certo para recomeçar.
A literatura de economia comportamental explica parte desse comportamento. A chamada aversão à perda leva o consumidor a manter contratos inativos, por receio de abrir mão de um ideal. O indivíduo não comparece, mas também não cancela. O vínculo jurídico se mantém ativo, embora a função prática esteja completamente esvaziada.
Nesse ponto, cabe observar que estamos diante de contratos de prestação continuada, firmados majoritariamente por adesão, frequentemente com cláusulas de fidelidade mínima e multas por cancelamento antecipado. A estrutura contratual, embora legal, impõe ao consumidor uma dinâmica de difícil saída, o que já motivou a judicialização de casos análogos em que se discute a validade de cláusulas abusivas (art. 51, IV e §1º, II, do CDC).
Mais ainda: há tensionamento direto com o princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil), que exige lealdade e transparência nas relações contratuais. Quando o serviço é deliberadamente estruturado para operar melhor com a ausência do usuário — e sem que isso seja informado de forma clara — questiona-se se há ou não violação à legítima expectativa do contratante.
E é exatamente isso que permite o sucesso da operação: um serviço que se remunera não por ser intensamente utilizado, mas por continuar latente, como uma dívida consigo mesmo.
Do ponto de vista da regulação, o modelo poderia demandar algum nível de intervenção normativa — seja via órgãos de defesa do consumidor, seja por mecanismos de transparência obrigatória. Uma solução intermediária, por exemplo, seria exigir que redes informem, no momento da contratação, a taxa média de comparecimento por unidade, ou o número médio de alunos por equipamento. Isso daria ao consumidor um dado real para confrontar a promessa publicitária.
Esse cenário suscita questões jurídicas relevantes. A boa-fé objetiva — princípio estruturante das relações contratuais — exige mais do que a ausência de má-fé. Impõe deveres anexos de lealdade, cooperação e transparência. Se a prestação de serviço é deliberadamente estruturada de forma a desestimular seu uso real, pode-se cogitar violação indireta a esse princípio. Ainda que não haja um vício aparente, há um descompasso entre expectativa legítima e modelo de funcionamento.
Mais do que uma questão contratual, trata-se de um modelo de negócio que desafia a própria noção clássica de prestação de serviço. Aqui, o prestador é bem-sucedido quando o consumidor está ausente. Não se busca excelência de entrega, mas um equilíbrio delicado entre atratividade simbólica e frustração silenciosa. É um sistema de fidelização pela inércia.
É sintomático, por exemplo, que tribunais já tenham enfrentado casos em que consumidores questionam mensalidades cobradas mesmo após tentativas documentadas de cancelamento (v. TJSP, Recurso Inominado Cível nº 1001901-20.2023.8.26.0506), ou em que se debate a ausência de contraprestação efetiva como causa de rescisão contratual sem ônus (v. TJDFT, Apelação Cível nº 0051865-44.2010.8.07.0001). Embora isoladas, essas decisões revelam uma fricção crescente entre modelo de negócio e função social do contrato.
É claro que não se trata de criminalizar a eficiência empresarial, tampouco desautorizar o modelo de baixo custo como proposta legítima de acesso. Mas a sofisticação dessa engenharia de incentivos — sustentada em contratos de adesão, comunicação padronizada e ausência de mediação humana — talvez demande um olhar regulatório mais atento. A assimetria que aqui se instala não é apenas informacional, mas emocional e comportamental. E justamente por isso, seus efeitos são mais sutis, duradouros e difíceis de reverter.
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